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24 de março de 2020
A pandemia do coronavírus e a aplicação da lei penal
Vive-se uma crise de saúde pública no Brasil e no mundo. Havemos de analisar os aspectos penais envolvidos neste cenário, partindo dos relevantes bens jurídicos constitucionalmente tutelados.
Vive-se uma crise de saúde pública no Brasil e no mundo. Havemos de analisar os aspectos penais envolvidos neste cenário, partindo dos relevantes bens jurídicos constitucionalmente tutelados. Em primeiro lugar, deve-se apontar o direito individual fundamental mais precioso, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, que é o direito à vida. Muitas enfermidades são capazes de produzir lesão à saúde, levando à morte. Por isso, como direito social, aponta o art. 6º, caput, da Carta Magna, expressamente, o direito à saúde. Na decorrência desses fatores, quando elaboramos o nosso conceito de dignidade da pessoa humana – preceito fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF (LGL\1988\3)) – tivemos o cuidado de indicar dois aspectos: objetivo e subjetivo. Objetivamente, abrange a garantia de um mínimo existencial ao ser humano, atendendo as suas necessidades vitais básicas, como saúde, moradia, alimentação, educação, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Subjetivamente, cuida-se do sentimento de respeitabilidade e autoestima, inerentes ao ser humano, desde o nascimento, quando passa a desenvolver a sua personalidade, entrelaçando-se em sociedade e merecendo consideração, principalmente por parte do Estado.
Assim sendo, para proteger o bem maior – a vida humana – é indispensável assegurar a saúde pública, razão pela qual o Código Penal a tutela, por meio de vários tipos penais incriminadores, no Capítulo III do Título VIII da Parte Especial. Cabe ao Estado criar todos os instrumentos para que a saúde de todos seja preservada, punindo aqueles que, de um modo ou outro, contribuem, na mão oposta de direção, para prejudicar a saúde individual ou coletiva.
Fixando algumas premissas, está-se diante de uma pandemia, portanto, convém estabelecer alguns conceitos. A mais leve lesão à saúde pública é o surto (aumento repentino e inesperado de determinada doença abrangendo um local determinado, como, por exemplo, um bairro ou região de certa cidade); segue-se para a epidemia (contaminação de várias pessoas, em curto espaço de tempo e em vários lugares, muito acima da expectativa, como, por exemplo, envolvendo toda uma cidade, um estado ou um país); após, atinge-se a pandemia (contágio e infecção de várias pessoas por uma doença, acima do esperado, abrangendo inúmeros locais e extrapolando as fronteiras de vários países; enfim, uma epidemia de caráter global, nos termos hoje usados pela Organização Mundial da Saúde). Não se deve confundir essas formas de contaminação com a endemia (enfermidade existente, com frequência, em certa região, atingindo um número indeterminado de pessoas, como, ilustrando, a febre amarela na região norte do Brasil ou a malária, na Amazônia ou na África).
No cenário do coronavírus identificado, inicialmente, como uma epidemia, localizada na China (primeiro país a expor a enfermidade), chega-se, hoje, à classificação de pandemia, por ter atingido inúmeros países do mundo. O Código Penal possui, basicamente, três crimes, que podem ser aplicados na atual situação: epidemia (art. 267), infração de medida sanitária preventiva (art. 268) e lesão corporal (art. 129).
O mais grave é o delito de epidemia (“causar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos”), cuja pena é de reclusão, de 10 a 15 anos. Havendo morte, essa pena é duplicada e se torna delito hediondo (art. 1º, VII, Lei 8.072/90 (LGL\1990\38)). O crime é doloso, mas existe a forma culposa, cuja pena é de detenção, de 1 a 2 anos; neste caso, havendo morte, a pena passa a ser detenção, de 2 a 4 anos. Na hipótese do coronavírus (microrganismo capaz de gerar doença), para que alguém cometa o crime de epidemia, seria preciso que, estando infectado, adentrasse região livre de contaminação, onde disseminaria o vírus de modo doloso (direto ou eventual) ou culposo (negligência, imprudência ou imperícia). Por óbvio, não se pode causar epidemia, onde ela já está presente, por se tratar de crime impossível. A pena é muito elevada justamente pelo fato de o agente contaminar área livre da enfermidade. Se o crime pode ser cometido com dolo ou culpa, vale exemplificar. Informado da existência do coronavírus, alguém, gripado, de maneira imprudente ou negligente, contagia terceiros. Esse agente não tem os sintomas típicos do coronavírus, mas, em razão da gripe, em época de COVID-19, não deveria se expor em lugares públicos; afinal, a sua gripe pode, em tese, ser o início da contaminação pelo coronavírus. Se o local onde esta enfermidade se espalhar for considerado livre da doença, o agente responde por epidemia culposa (art. 267, § 2º, CP (LGL\1940\2)). Conhecendo a sintomatologia do novo vírus e possuindo os sintomas (tosse seca, febre elevada, dificuldade de respirar), assume o risco de transmiti-la a terceiros, em lugar onde o coronavírus não chegou, causando a epidemia por dolo eventual. Responde como incurso no art. 267, caput, do Código Penal. Se tiver feito o teste laboratorial e, comprovada a contaminação pelo coronavírus, o agente se dirigir a local onde inexiste a epidemia, provocando-a, de propósito, atua com dolo direto e pode responder, igualmente, como incurso no art. 267, caput, do Código Penal. A tipificação é a mesma para dolo direto e dolo eventual, embora na mensuração da pena, segundo entendemos e conforme o caso concreto, o juiz possa considerar mais grave o delito, quando cometido com dolo direto. O crime é material (depende de resultado naturalístico, que é a comprovação da geração da epidemia) e de perigo concreto (potencialmente danoso à saúde pública, mas com visível comprovação). A configuração do crime de epidemia é rara e difícil de ser comprovada.
Por isso, as autoridades sanitárias brasileiras se preocuparam, no momento, em destacar o delito do art. 268 – infração de medida sanitária preventiva (“infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” – mais simples de apurar e punir, cuja pena é de detenção, de 1 mês a 1 ano, e multa. Aumenta-se a pena em 1/3 se o agente for funcionário da saúde pública ou exercer a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro. Este crime, diversamente da epidemia, é norma penal em branco e depende de complemento, vale dizer, do conhecimento de determinação do poder público exigindo isolamento (separação de doentes ou contaminados pelo coronavírus), nos termos do art. 2º, I, da Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), quarentena (restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de estarem contaminadas, mas não enfermas), conforme art. 2º, II, da referida Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068) ou outra medida, como a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação, entre outras. Para a configuração do crime previsto no art. 268 do Código Penal é preciso agir com dolo, pois inexiste a forma culposa. Pode-se indagar: qual a intenção do agente? Por óbvio, não é causar epidemia, nem tampouco contaminar alguém, mas simplesmente não respeitar a ordem do poder público para se isolar ou ficar em quarentena. É uma infração penal de perigo abstrato (presume-se a potencialidade lesiva de quem infringe a determinação do poder público) e formal (basta a conduta de infringir a ordem para se consumar, independente de qualquer resultado naturalístico, como gerar contágio). É uma infração de menor potencial ofensivo, comportando transação e não há prisão em flagrante, mas o encaminhamento do agente para lavrar o termo circunstanciado, com o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal. Um lembrete é importante: a norma penal em branco precisa, na realidade, de dois complementos. O primeiro já foi editado: a Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), prevendo a viabilidade de se decretar o isolamento, a quarentena e outras medidas restritivas da liberdade individual. Mas não basta. É preciso que a medida restritiva seja efetivamente imposta pela autoridade competente (Ministro da Saúde ou gestor local de saúde, autorizado pelo Ministério da Saúde), nos precisos termos do art. 3º, § 7º, da mencionada Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068). Vamos além: o segundo complemento da norma penal incriminadora deve provir do poder público federal, como regra. Outros gestores de saúde (estaduais e municipais) só poderão fazê-lo, com repercussão penal, se forem previamente autorizados pelo Ministério da Saúde. Um segundo destaque é que o complemento deste tipo incriminador é ultrativo, nos termos do art. 3º do Código Penal, porque, superada a crise e afastada a medida restritiva imposta pelo poder público, quem a tiver infringido, quando a determinação estava em vigor, continuará a responder criminalmente pelo que fez. Afinal, gerou perigo à saúde pública, lesionando o bem jurídico tutelado. Por derradeiro, visualizando, hoje, o desenvolvimento da propagação do coronavírus, podemos concluir que o crime do art. 269 pode ser instantâneo (resultado imediato, não se prolongando no tempo), como defendemos em nossas obras, mas também pode dar-se na forma permanente (resultado que se arrasta no tempo), dependendo da maneira de infringência da determinação do poder público, o que nos permite ampliar a nossa anterior visão. Se há uma ordem de recolhimento à casa, enquanto o agente permanecer na via pública, a sua transgressão está colocando em risco a saúde pública, pois o perigo de contágio permanece vivo. A forma permanente permite a imediata detenção para a lavratura do termo circunstanciado.
Na análise dos delitos sob o espectro do coronavírus não se deve olvidar o crime de lesão corporal (art. 129, CP (LGL\1940\2): “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”), cuja pena, na figura simples, é de detenção, de 3 meses a 1 ano. Este formato é infração de menor potencial ofensivo e depende de representação da vítima, como regra. Porém, pode atingir formas qualificadas, como a lesão grave, com perigo de vida (art. 129, § 1º, II, CP (LGL\1940\2)), com pena de reclusão, de 1 a 5 anos, bem como a lesão seguida de morte (art. 129, § 3º, CP (LGL\1940\2)). Existe a forma culposa (art. 129, § 6º, CP (LGL\1940\2)), com pena de detenção, de 2 meses a 1 ano, igualmente infração de menor potencial ofensivo, dependente de representação da vítima. Ilustrando, o delito de lesão corporal pode ser aplicado quando a transmissão do vírus se der, de forma dolosa, em ambiente restrito, onde há apenas duas pessoas. Uma delas, contaminada, espirra no rosto da outra, visando à transmissão do vírus; resultando em infecção, haverá lesão corporal simples (não ocorrendo o contágio, pode-se até sustentar a tentativa de lesão, que, embora difícil de ser comprovada, é possível). Se a vítima for idosa, pode chegar ao perigo de vida ou mesmo à morte, ingressando-se nas formas qualificadas da infração penal. Cuida-se de um crime material e de dano, não se aplicando os delitos contra a saúde pública, mas a infração penal contra a incolumidade física.
Finalmente, outro crime inserido no contexto da pandemia do coronavírus, mencionado na Portaria Interministerial n. 5/2020 (Ministros de Estado da Justiça e Segurança Pública e da Saúde) é a desobediência, prevista no art. 330 do Código Penal (“desobedecer a ordem legal de funcionário público”), cuja pena é de detenção, de 15 dias a 6 meses, e multa. Cuida-se de infração de menor potencial ofensivo. Somente se valerá o poder público deste tipo penal, caso não haja a inserção do agente em outro crime, como, por exemplo, o delito de infração de medida sanitária preventiva (art. 268, CP (LGL\1940\2)), evitando-se a dupla punição pelo mesmo fato (bis in idem). Fora do contexto da infringência da determinação de autoridade sanitária, prevista na Lei 13.979/2020 (LGL\2020\1068), pode haver necessidade de se cumprir ordem específica, como, ilustrando, não adentrar o quarto hospitalar onde se encontra um enfermo em isolamento. O desrespeito à ordem legal pode gerar desobediência, mas este é um crime instantâneo, cujo resultado se constata de imediato, pois o objeto jurídico é a preservação da autoridade da Administração Pública.
Por certo, acima da aplicação de leis penais, em cenário já conturbado pela crise do coronavírus, está a conscientização da população no tocante ao seu dever cívico de proteger a sua saúde e a de outros membros da coletividade onde vive. Nesta fase, emerge a responsabilidade moral de cada um, mais relevante do que a responsabilidade penal pelos males porventura causados. Possamos todos caminhar no mesmo sentido em prol do bem-estar e da saúde pública.
Guilherme de Souza Nucci
Livre-docente em Direito Penal – PUC/SP Doutor e Mestre em Processo Penal – PUC/SP Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo nucciguilherme@gmail.com
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